José Pacheco: ‘ensinar é impossível, aprender é inevitável’

“Há que se aprender a reaprender, a desobedecer e a desaparecer”, diz o educador José Pacheco, em uma fala que parece um tanto enigmática, mas que é pura lucidez. Esses dizeres simples poderiam explicar sozinhos o que é o projeto de diluir o modelo transmissivo que rege a chamada “velha escola” para a lógica participativa, afetiva e de escuta que norteia a Educação Integral. Ou seja, a disponibilidade de o educador estar disposto a romper com ideias ultrapassadas, a capacidade de subverter a ordem das coisas e a sabedoria de sair de cena, quando for preciso.

Pacheco falava para uma plateia atenta, e vez ou outra interrompia o correr da fala para contar histórias. Contou sobre a Escola da Ponte – escola pública que fundou em Portugal há 41 anos e que hoje é reconhecida como uma das experiências de aprendizagem mais importantes do mundo – sobre o Projeto Âncora, no qual atua, em São Paulo, e sobre as “turmas de lixo”, como eram chamados os jovens de 15 e 16 anos que não sabiam ler nem escrever, e aos quais foi devolvida a possibilidade de acreditar em si mesmos. Falou sobre educação em seu sentido mais largo e íntegro.

Aconteceu ontem, 19, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, um dos encontros do Ciclo Educar Hoje – Educação Integral e Cidades Educadoras, que passou por unidades da capital, interior e litoral paulista – clique aqui para saber mais. Ao lado de Pacheco, estavam Raiana Ribeiro, gestora do programa Cidades Educadoras, da Associação Cidade Escola Aprendiz, Sabrina Paixão, supervisora do Programa Curumim, e Nayana Brettas, do Criacidade e Criança Fala.

A educação integral como possibilidade de perceber a criança como um ser pleno em suas múltiplas dimensões – emocional, intelectual, social, cultural.

O que é Educação Integral?

À primeira vista, a pergunta parece óbvia. Quem não poderia respondê-la, se o próprio nome se explica? Mas a grande questão aqui é: por que precisamos do adjetivo “integral” para qualificar a educação? Toda educação já não deveria ser integral – e integrada, e integrante – em sua essência? Começa aí a reflexão sobre a educação que temos, e a queremos ter.

Assim, “o que é educação integral?” foi a primeira pergunta feita pela mediadora aos presentes na conversa do Ciclo Educar. Na fala de todos, sobressaíram algumas palavras que se não definem por completo, ao menos dão pistas: integralidade, presença, inteireza, escuta, vínculo, conexão, respeito.

“Nós nos educamos pelo modo de olhar, de tocar, de olhar para o outro. Uma cidade educa quando não tem uma rampa de acesso a cadeirantes, quando oferece uma peça de teatro no centro e a pessoa não têm como pagar três conduções para chegar até ela. Isso também é educação. É uma delas. Mas é essa que queremos?”, provoca Sabrina, do Curumim, programa de educação não formal para crianças pautado na afetividade, no senso de participação e pertencimento e na valorização do brincar. Citando Manoel de Barros, ela defende o olhar para a cidade e para as experiências com a educação a partir desse subverter o que está dado. “Desfazer o normal há de ser a norma”.

Para Nayana Brettas, “uma cidade educadora é aquela que respeita e acolhe as crianças os fazendo a reaprender a olhar, sentir e pensar como as crianças. Elas carregam consigo a chave da transformação para termos cidades mais saudáveis. Vamos encher os pulmões das cidades com o brincar das crianças para fazermos cidades mais saudáveis”, que, junto com os pequenos, ajudou a transformar uma rota de tráfico no bairro do Glicério, na região central da cidade, em um canteiro de brincar a céu aberto, com mobiliário lúdico idealizado pelas crianças, desenhos que elas mesmas fizeram nas paredes, conexões verdadeiras, muito colorido e até uma tartaruga, que um morador da região “empresta” para as crianças brincarem. “Precisamos olhar o mundo com olhos poéticos, e a criança traz isso com muita força”.

Pacheco chama a atenção para o abismo que muitas vezes se impõe entre a teoria e a prática. Antes de uma revolução da educação, seria necessária uma revolução do ser humano. “Educação integral nada mais é do que contemplar a multidimensionalidade do ser humano (respeitar suas dimensões afetiva, estética, ética, cultural, etc), por isso é que eu digo que ela não existe – ou melhor, só existe nas teses”.

Na foto, o Mapa Afetivo do Glicério, e o móvel-escorregador-escada em forma de dinossauro que as crianças inventaram para a rua.

“Em uma escola que tem sala de aula, aluno, provas, tudo isso, não se pode fazer educação integral. Quando eu digo que não tem aluno em uma escola, me refiro ao aluno como objeto de aprendizagem, e eu não quero isso; o que quero é estar com sujeitos de aprendizagem. As pessoas confundem escola com edifício, mas a escola são as pessoas. Hoje, não se ensina nem se aprende, porque não se pode dar a beber a um cavalo que não tem sede”.

“Conheço jovens que estão duzentos dias por ano dentro de uma sala de aula e não aprendem, e outros que estão fora e aprendem. Estamos diante de muitos equívocos, e o maior deles é pensar que a educação integral é possível em uma escola do século XIX. Não é. Essa velha escola é excludente. E há quem pense que as escolas são autônomas, que os alunos são considerados. São nada”, ressalta.

Em relação ao conceito de cidades educadoras, o mesmo pensamento se aplica. Poderíamos nos contentar apenas com “cidades”, por que adjetivá-las, senão para ampliar o olhar para tudo aquilo que ela poderia ser? “Todas as cidades são educadoras, mas para que elas educam? Para pensar nisso, temos que redefinir conceitos”, diz o educador.

“Quando a Lei de Diretrizes e Bases estabelece que o aluno deve ter pelo menos 75% de frequência, eu pergunto: o que é frequência? Presença não é estar dentro de uma sala de aula, frequência é aprendizado”, questiona.

Para Pacheco, o próprio nome “educação infantil” contém em si a fragilidade da perspectiva social sobre o assunto. “Eu não distinguo ‘educação infantil’ de ‘educação’. Não existe uma educação especial, porque toda educação é especial. ‘Infantil’ é um adjetivo, trata-se de uma educação da infância. A segmentação serve a muita gente, ficam todos felizes por haver o Fundamental I, II, e por aí vai. Mas não tem por que.

A educação integral não é senão entender o indivíduo em sua integralidade, ao mesmo tempo em que se oferece uma presença de qualidade, íntegra e motivada pelo respeito. “A pessoa está ali, e portanto tem o direito de ser quem é”.

“Qual é a estrutura necessária para que isso tudo se concretize?”, foi a pergunta que fizemos ao educador. “A estrutura humana do diálogo, nada mais”, disse. “Para ser educador, basta ser gente, e perceber que aprendemos uns com os outros. Gastam-se milhões para construir edifícios escola. Para quê? Nada disso é necessário”.

No Glicério, graças ao Criacidade e o projeto Criança Fala, as ruas ruas ganham barco pintado no chão e as casas viram castelo.

“Eu sou professor, e sei muito bem o que passei enquanto estive sozinho em uma sala de aula. É preciso pensar a montante. O que fez este professor até chegar à profissão?”, explica, referindo-se ao ciclo vicioso que inicia com as referências recebidas em casa, se perpetua na universidade, com professores que repetem conceitos, e se confirma na prática do ofício, em geral realizada em instituições hierarquizadas onde o educador não tem qualquer chance de autonomia. “Muitos ficam com a síndrome da Gabriela: nasci assim, vou ser sempre assim”, brinca, em relação a uma lógica de “ensino” fadada ao fracasso.  Para ele, a grande culpa por esse sistema falido é da estrutura pedagógica que permite a continuação de um modelo esgotado e com conceituação filosófica no século XVI.

“E assim eles se instalam. Mas essa é a menor das conivências. A maior das conivências não é do governo, porque políticos não sabem nada de educação, mas sim dos pedagogos. Eu lamento esse obsceno silêncio, porque eles conhecem a sociologia da educação, estudaram Piaget, Bourdieu e Vygotsky, sabem que não é assim que se faz e mesmo assim se calam, são coniventes com os professores que continuam. Basta de fazer dos professores bodes expiatórios, eles são vítimas. A grande pergunta é essa: o modo como as escolas trabalham garante o direito à educação que está na Constituição federal? Não. As escolas têm o direito de continuar a trabalhar assim? Não”, defende.

Como, então, alcançar essa dimensão do humano a partir da educação? Uma revolução no modo como as pessoas, o poder público, e a própria criança, percebe a escola é possível? Muitas interrogações cabem aqui, talvez nenhuma corresponda a uma certeza exata. José Pacheco é um homem de histórias, não de verdades absolutas nem de respostas únicas. Por isso, ele recorre à poesia, ao potencial dos sonhos para gestar um mundo diferente. “Sempre que um homem sonha, o mundo pula, avança”, diz, recitando um poema português.

Como disse Pacheco, “A velha escola vai parir a nova educação”. O que podemos saber, por enquanto, é que será um parto doloroso.

“Ensinagem” X Aprendizagem

Dentre as muitas defasagens da escola formal, está o conceito de aprender e ensinar. Há uma diferença entre basear toda uma pedagogia no “Eu quero ensinar” e investir no “Eu quero aprender como a criança aprende. A transição da lógica transmissiva das escolas tradicionais para a lógica participativa não é simples, pois está relacionada a uma transformação no modo de pensar.

Depois da experiência na Escola da Ponte e de realizar a tutoria do Projeto Âncora, em Cotia, Pacheco está envolvido agora em mais um projeto, já em andamento e que deverá começar a funcionar em fevereiro de 2018, a Comunidade de Aprendizagem do Paranoá (CAP), na cidade-satélite localizada a dez quilômetros de Brasília, e mobilizado por um grupo de educadores e educadoras da região.

Enquanto na Escola da Ponte o centro das prioridades é a criança, e, no Âncora, o centro são as relações entre educadores e crianças, neste novo projeto, o foco será a comunidade.

  • Desemparedar para educar plenamente – Assim como a portuguesa que a inspirou, a Escola Projeto Âncora não tem séries; crianças de seis a dez anos estudam juntos, desenvolvem projetos de pesquisa de acordo com suas afinidades e são orientados por professores e pedagogos.

A proposta parte do princípio da comunicação dialógica e das relações construídas capazes de estabelecer vínculos éticos e estéticos entre as pessoas. Mais do que nunca, não haverá séries nem distinção de idade, e o projeto vai promover uma experiência de educação para a vida, desde o pré-natal até os últimos dias.

“Presença não é estar dentro de uma sala de aula, frequência é aprendizado”, provoca o educador.

Comunidades de aprendizagem

“O conceito de Comunidades de Aprendizagem dialoga estreitamente com os conceitos de Bairro-escola, Território Educativo e de Cidade Educadora. Comunidades de Aprendizagem dizem respeito a projetos educativos que extrapolam os limites da escola, envolvendo toda a comunidade no processo de formação de seus indivíduos.

Pacheco defende que Comunidades de Aprendizagem não são projetos de escolas, mas justamente a superação do modelo educacional baseado em aulas, séries e disciplinas.  Para o educador, as Comunidades de Aprendizagem são “práxis comunitárias baseadas em um modelo educacional gerador de desenvolvimento sustentável. É a expansão da prática educacional de uma instituição escolar para além de seus muros, envolvendo ativamente a comunidade na consolidação de uma sociedade participativa.”

(FONTE: Centro de Referências em Educação Integral).

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