Educador físico Fabio Bertapelli pesquisa a relação entre obesidade e a Síndrome de Down

Por: Mayara Penina

Por Helaine Gonçalves do Instituto Alana

Fala mansa, sotaque carregado e uma grande paixão. Foi necessário pouco tempo ao lado do educador físico Fabio Bertapelli para entendermos o motivo que o fez largar suas raízes paranaenses rumo à Campinas. “Estudar a obesidade na síndrome de Down tem sido uma descoberta. Meu lazer é estudar, estudar e estudar. Quem sofre é minha esposa, que entrou nessa comigo”, diz.

Nessa caminhada, além de diversos artigos publicados internacionalmente, bolsas de incentivo e um mestrado, agora Fabio conclui as últimas etapas de seu doutorado em Saúde da Criança e Adolescente na Faculdade de Ciências Médicas pela Unicamp. Ou seja, nestes 32 anos de vida, dez foram dedicados a promover qualidade de vida para as pessoas com síndrome de Down.

Dias antes de embarcar para uma temporada de mais estudos, agora em terras norte-americanas, conseguimos bater um papo com este pesquisador. Uma ótima oportunidade para esclarecer um tema pouco explorado – o que lhe custou um pouquinho menos de tempo com a esposa. (Obrigado, Lisiane!)

Para começar: por que ter a síndrome de Down como objeto de estudo?

Comecei meus estudos em 2005 por meio de um projeto da universidade específico para pessoas com deficiência intelectual, incluindo a síndrome de Down. Fui acompanhando as características específicas como altura, crescimento e observando o quanto a gordura corporal merecia mais atenção de todos, precisava ser olhada com carinho. Fora que trabalhar com as pessoas com a síndrome é muito gostoso. É apaixonante.

Seu primeiro contato com a síndrome de Down foi exclusivamente acadêmico?

Na minha infância, tinha uma criança com síndrome de Down no meu bairro em Toledo, no Paraná. Lembro de ficar encantado com ele. A gente conversava, brincava pela rua. Mas, na época, eu não sabia o que era a síndrome de Down. E só fui saber mesmo quando entrei nesse projeto na faculdade de Educação Física.

Desde cedo, a criança com síndrome de Down é estimulada com muitas terapias com fonoaudiólogos, fisioterapeutas, etc. Por que incluir a Educação Física nesse sistema?

A Educação Física trabalha diversos aspectos da mente e do corpo. E a saúde, qualidade de vida, é importante para toda a população. Não podemos ignorar o auxílio da prática da atividade física e do esporte como forma de auxiliar a prevalência da obesidade na síndrome de Down. A gordura corporal elevada é um fator real, não pode ficar em segundo plano.

O sobrepeso e a obesidade é considerada por muitos uma epidemia mundial. Por que essa realidade acaba sendo mais preocupante nas pessoas com SD?

Muitos pesquisadores estão vendo a gordura corporal como uma pandemia. E o avanço da obesidade infantil é assustador de 1950 pra cá. Já os primeiros estudos sobre este fator na síndrome de Down datam de 1980. E, nessa época, a porcentagem também já era crescente e mais elevada que a da população em geral. Alguns falam em 2 a 3 vezes maior, só que estes índices dependem muito da região estudada, da cultura, da comunidade inserida. Mas o fator comum é que, a nível global, é evidente a prevalência da obesidade na população. Seja em homens, mulheres, meninos e meninas. Independente da idade, sexo e inclusive da questão socioeconômica.

Qual é a relação direta entre o maior acúmulo de gordura e as pessoas com síndrome de Down?

São vários fatores que ainda estamos mapeando corretamente. Nós temos um problema muito grande hoje que é a falta de dados e estudos. Só reunindo bibliografia publicada sobre obesidade temos 4144 estudos. Pesquisas relacionando a síndrome de Down com o peso corporal, crescimento, sobrepeso, enfim. Mas, aplicando um critério de qualidade – validando estudos sérios, de universidades ou revistas de renome – caímos para apenas 42 pesquisas. Agora tu me perguntas: alguma é do Brasil? Não. Uma coisa é a gente falar em obesidade nos Estados Unidos, Holanda, China ou outros países com muita pesquisa. Outra coisa é falar do nosso país, cheio de diversidade e com uma questão cultural muito diferente. A carência que temos de dados aqui é preocupante. Temos dados epidemiológicos dizendo que 1 a cada 700 nascidos vivos tem síndrome de Down no Brasil. Nem esse dado é nosso, mas imaginando isso, temos uma população enorme com síndrome de Down no país. Por que não ter estudos? Tudo o que sabemos sobre os multifatores são de fora. E a gente agora está engatinhando, pegando crianças e adolescentes, acompanhando o crescimento, verificando tudo de fato. Quantos estão obesos? Quantos não? Só a partir daí a gente começa a traçar corretamente os passos para melhorar essa questão.

Fábio é doutorando em Saúde da Criança e Adolescente na Faculdade de Ciências Médicas pela Unicamp.

E quais são suas primeiras observações baseadas nestes multifatores?

Alguns estudos atentam para a leptina, um hormônio produzido pelas células adiposas pra controlar a saciedade. Vamos dizer que é o hormônio que controla a fome. Em algumas crianças vemos esta dose alterada. Logo, essas crianças passam a comer mais e, consequentemente, a gordura corporal aumenta. Outra questão é a taxa metabólica basal, que alguns chamam de gasto energético em repouso. Você dormindo gasta caloria. Esse índice fica em média entre 1300 e 1500 quilocalorias. Na síndrome de Down, o gasto calórico em repouso gira em torno de 900 a 1200 quilocalorias. Três estudos já apontam pra isso. Então, se você analisar ao longo do tempo, vamos imaginar que a pessoa com síndrome de Down coma da mesma forma que a população geral: a mesma quantidade de alimento, mesma qualidade de calorias… As consequências para ela são outras. E se pensarmos que essa taxa basal diminui com o tempo, em função da idade, é automático o aumento da gordura corporal. Ou seja, em repouso, sem atividade alguma, eles gastam menos. Pra prevenir, eles precisariam gastar essas calorias praticando mais exercícios que a população sem a síndrome. Só que as pessoas com síndrome de Down tem uma diminuição da massa muscular, hipotonia, atraso motor, etc. E comprovadamente sabemos que elas não são estimuladas a praticar atividades físicas. Até as comorbidades como o hipotireoidismo e as cardiopatias não justificam a falta de movimento. Daí caímos para a questão ambiental, para a atuação da família superprotegendo a pessoa com SD. Não são só as questões orgânicas que influem no sobrepeso, temos também a falta de uma dieta equilibrada. Viu como é complexo? É um emaranhado de fatores e informações que demanda ainda muito mais estudo e discussão.

Como a família pode auxiliar nesse controle alimentar?

Entendo que os pais acabam sobrecarregados com o filho. Tem que levar no cardiologista, endocrinologista, no terapeuta, psicólogo… E chega a adolescência tem que levar em uma academia? Ir a um nutricionista? Mas o papel da família é diferente. Antes a hipótese era que a família tendo mais controle sobre a alimentação do filho  – cuidando da dieta e pressionando as quantidades – geraria resultados satisfatórios. E, na verdade, os efeitos são contrários, havendo o aumento no índice de massa corporal do adolescente. Quanto maior controle e pressão dos pais, mais adolescentes obesos. Isso é interessante porque partíamos do pressuposto errado. O papel da família é o de auxiliar na busca pelos profissionais habilitados para obter uma dieta equilibrada e definir a prática de exercícios adequados. Ajudar na busca por informação. A informação e a autonomia são os grandes segredos.

A amamentação pode auxiliar no combate à obesidade infantil?

O que sabemos é que muitas crianças com síndrome de Down nascem com baixo peso, o que acarreta em carência de nutrientes. É como se fossem programados biologicamente, desde o útero, a ter baixo peso. De certa forma, a amamentação ou alimentação será mesmo difícil no início. Só que depois vemos uma compensação de alimentos. É alarmante! Chega ao ponto de crianças com 16% de gordura aos 3 anos passarem a ter 45% aos 5 anos. É um ganho de peso muito rápido. Se você tem um aumento de gordura na infância, a chance da obesidade aumentar na adolescência e na fase adulta é muito grande. Se chegar na adolescência com sobrepeso ainda é mais difícil e raro conseguir voltar ao peso ideal pelos métodos convencionais. Me preocupa a necessidade de intervenção e a falta dela gerando consequências. Por isso é muito importante essa análise precoce, para fazermos um tratamento efetivo ao longo dos anos. Esse tema precisa ser discutido porque estamos a ponto de começar a perder crianças e adolescentes. Estou falando de óbito mesmo. Perder alguém quando poderíamos controlar o peso corporal com a nutrição adequada e a prática de atividade física correta é negligência.

Ser mais propenso ao sobrepeso significa ter mais dificuldade para emagrecer?

A métrica é igual: perder o que acumulou ou o excesso. O sucesso na intervenção depende muito da idade. Se a criança começou a acumular gordura aos 4 anos, a intervenção precoce terá mais chances de ser bem sucedida. Diferente na adolescência ou na fase adulta. Mas se as atuais recomendações da necessidade de praticar atividades físicas e de ter uma dieta balanceada não estão gerando resultados positivos na população em geral, é ainda mais difícil direcionar essa necessidade para as pessoas com síndrome. A intervenção correta depende da existência de políticas públicas, redes de suporte multidisciplinar com programas de perda de peso. Uma equipe que envolva profissionais de educação física, nutricionistas, médicos e psicólogos acompanhando por um período – 6 meses ou mais – não só a pessoa com síndrome de Down, mas toda a sua família, escola e comunidade. O erro está em pensar que a solução está só na mão do profissional de educação física. Os estudos em geral mostram que a atividade física isolada não traz resultados, existe uma questão comportamental e orgânica também.

Podemos concluir que as consequências da obesidade seriam as mesmas em pessoas com e sem síndrome de Down?

As consequências físicas e mentais envolvem: níveis de inflamação muito altas, diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares, piora na qualidade de vida, baixa autoestima e outras questões psicológicas. Isso já é observado na criança com obesidade. Ela não precisa crescer para vermos as consequências. Agora imagine uma criança com síndrome de Down com uma cardiopatia congênita: os riscos são aumentados. Outra questão é a apneia do sono, que muitos dizem ser um distúrbio da síndrome. É a síndrome que leva à apneia do sono ou é a obesidade? O colesterol elevado também gera dúvida dos pesquisadores: ele se deve à obesidade ou à síndrome? É difícil a gente falar de consequências da obesidade na minha opinião. Sem sombra de dúvidas, existem consequências, mas a intensidade, nível e o tipo ainda não conseguimos medir. Não que seja impossível, com estudos científicos controlados chegaríamos à resultados interessantíssimos. Sabemos somente que as consequências surgem por questões orgânicas, comportamentais e ambientais. E por isso vemos crianças com síndrome de Down com obesidade mórbida.

Como podemos contribuir para disseminar informação e alertar mais a população sobre a urgência deste tema?

Um ponto é o fomento de pesquisas e projetos. Nem sempre boa vontade pode contribuir decisivamente na pesquisa, é necessário investimento financeiro. Dizer que faltam pesquisas não significa dizer que falta interesse no tema. Existem pesquisas com parcerias dos Estados Unidos e do Reino Unido, mas estão emperrados financeiramente. Outro estudo está focado em tratar as desordens associadas à síndrome de Down desde o útero, em olhar pra gestante. Existem outros projetos de mapeamento da síndrome a nível populacional, com probabilidade de ir para o Brasil inteiro. Aqui no laboratório reunimos 15 mil informações sobre peso, altura, variáveis antropométricas capazes de dar uma estimativa real da condição da obesidade na síndrome de Down no Brasil. Um banco de dados a ser lançado no máximo em dois anos, pra repercutir junto à comunidade científica e, principalmente, em toda sociedade. E a ideia é expandir, tornar essa uma produção global, com mais de 20 países, reunindo todos os pesquisadores e profissionais da síndrome. Só com pesquisas vamos reverter muitos achismos e informações defasadas. Para você ter uma ideia, usamos uma curva de crescimento, peso, estatura para a criança com síndrome de Down de 1988. É até divulgada pelo Ministério da Saúde. Uma curva que não tem mais funcionalidade e utilidade, mas continua sendo utilizada nos laboratórios, ambulatórios e clínicas pediátricas. Outro ponto é que essas informações científicas precisam ser trabalhadas, precisam ser acessíveis para quem está em casa. A síndrome de Down precisa ganhar a mídia. Que todos cansem de ouvir e falar, para verem que não é um bicho-de-sete-cabeças.