Efeitos das palmadas na infância impactam a formação do adulto

Por muito tempo viveu-se uma cultura em que palmadas na educação dos filhos era não só aceita como estimulada. Pais e educadores, de forma geral, viam nos “tapinhas” uma forma eficiente de corrigir as crianças. Ainda que hoje exista no Brasil uma lei que proíba este comportamento, essa é uma cultura que está arraigada na sociedade e não é tão fácil de mudar.

“É um adestramento, a submissão total”, defendeu à Folha de São Paulo a psicanalista Isabel Kahn, professora na área de infância e família da PUC-SP. A questão é que, apesar de aparentemente uma palmada apresentar efeito instantâneo, ela traz consequências a longo prazo, se estendendo pela vida adulta.

Pesquisadores dos Estados Unidos mostraram, por meio de um estudo publicado na revista Pedriatrics, que apanhar na infância leva a um maior risco, na fase adulta, do uso abusivo de álcool e de drogas, além de maior probabilidade de tentativa de suicídio.

O uso de violência na correção dos filhos pode trazer graves consequências na vida adulta.

Na pesquisa foram ouvidas 600 pessoas com mais de 20 anos de idade e ficou comprovado que até 7% dos transtornos mentais apresentados por adultos (como ansiedade, abuso de álcool e drogas, transtorno obsessivo compulsivo, e variações de humor) podem ser atribuídos a punições físicas severas na infância (bater, empurrar, agarrar).

Os pesquisadores defendem que, embora essa porcentagem pareça pequena, é suficiente para mostrar que os castigos físicos podem ser considerados fatores de risco para problemas mentais. Nos Estados Unidos, onde os estudos foram realizados, surras com fins educativos ainda são banalizadas e inclusive liberadas em escolas públicas de muitos estados.

No Brasil, um levantamento feito em 2010 pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) revelou que 20% dos entrevistados haviam sido punidos fisicamente e de forma regular na infância. O índice dos que apanharam ao menos uma vez foi bem mais alto (70%).

A psicóloga e psicanalista Juliana Wierman, coordenadora da psicoterapia infantil do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove), da Unifesp, declarou à Folha de São Paulo que muitos pais que apanharam quando pequenos repetem a atitude com os filhos. “Uns acreditam que é a maneira correta de educar e outros não sabem agir de outra forma –e se culpam por isso” – completa.

A violência física transmite às crianças a ideia de que é legítimo impor a vontade pela força.

Para ela, este é um reflexo de os pais não acreditarem no diálogo como forma eficiente de corrigir comportamentos inadequados das crianças, mas isso precisa mudar. “(a conversa) resolve sim, se vai sendo estabelecida desde cedo. Há diferença entre ser firme e ser violento. Tem que explicar o motivo, ser firme com carinho” – continua.

Castigos físicos frequentes podem levar as crianças a verem o mundo como um lugar ameaçador, além de passar a ideia de que é legítimo impor a vontade pela força. Elas também podem reproduzir o lugar de vítima em outras relações.

“Vemos isso com crianças que foram vítimas de abuso sexual, que quando recebem carinho ficam desconfiadas. Também há crianças que foram abusadas e se tornam abusadoras”, afirma Wierman.

  • Lei da Palmada

Publicada no ano de 2014, a Lei 13.010, conhecida como Lei da Palmada, proíbe pais de aplicarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante para educar os filhos. Ficou determinado que, aqueles que agredirem os filhos devem receber orientação, tratamento psicológico ou psiquiátrico, além de advertência.

De acordo com o artigo 129 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os pais podem, ainda, perder a guarda, ser destituído da tutela e do poder familiar.

Além dos pais, podem ser enquadrados parentes, servidores que cumprem medidas socioeducativas ou qualquer outra pessoa encarregada de cuidar da criança. Quem recebe as denúncias é o Conselho Tutelar.

Apesar de relevante, a Lei da Palmada é criticada por grupos de advogados por ser subjetiva e apresentar muitas brechas judiciais:

“Em que medida um tapa é significativo? A forma como ele é dado, o contexto, tudo isso deverá ser considerado [na Justiça]. Uma palmada pode não ser considerada sofrimento físico, e o que vai determinar isso serão as decisões [judiciais]”, defendeu à Folha o criminalista Carlos Kauffmann.

A Lei da Palmada às vezes se torna ineficiente porque apresenta muitas brechas e subjetividades.
  • A Palmada

A palmada faz parte da história, da cultura. No entanto, no artigo “Um monstro esconde-se em casa. A violência doméstica contra crianças e adolescentes”, a advogada Danielli Xavier Freitas remonta o tempo de colonização do Brasil.

De acordo com relatos do padre Luís da Grã, citado por Viviane Nogueira de Azevedo Guerra no livro “Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas”, “os índios do Brasil nunca batem nos filhos por nenhuma coisa […] não tem pai que açoite o filho e falar alto e de forma ríspida a criança sente muito mais do que lhe bater”.

Como foi então que a cultura dos tapinhas chegou até nós? Segundo o artigo, os padres, da Companhia de Jesus, em 1549, costumavam punir com palmatórias e tronco quem faltava à escola jesuítica.

Para eles, o carinho, os vícios e pecados deveriam ser combatidos da mesma forma, com violência e castigos para ensinar às crianças que a obediência aos pais era a única forma de escapar da punição divina. De tão indignados em relação às agressões, muitos indígenas abandonavam os estudos e a doutrina.

  • Educando sem Violência

Autora do livro “Educar sem violência – criando filhos sem palmadas“, Ligia Moreiras Sena defende que é preciso se informar muito para ensinar as crianças sem precisar recorrer à violência.

Segundo estudo, 70% dos brasileiros já apanhou alguma vez na vida.

Muitos pais justificam as palmadas como gesto de amor, de educação. “Isso ensina uma coisa extremamente perigosa: o amor tem aval para agredir. O amor é motivo para violentar. E violência pode ser aceita nesses casos” – observa Ligia no artigo publicado no blog Cientista que Virou Mãe.

Para uma educação consciente e não violenta “facilidade não deve ser a meta neste caso (talvez em nenhum caso, mas nesse ainda menos). Em sendo, estamos fadados a perder uma das maiores oportunidades de mudança e transformação social e coletiva: a mudança pelas pessoas, pela educação, pela empatia e não violência”, completa a autora, que também é bióloga, mestre em psicobiologia, doutora em Farmacologia e doutoranda em Saúde Coletiva.

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